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Por Clarissa Janini e Gisèle de Oliveira
O título desta entrevista faz alusão a uma frase dita pelo mestre Paulo Freire sobre o nosso entrevistado: ” Cortella é um dos raros filósofos da educação que pensam o novo”. Essa capacidade de Mario Sergio Cortella o transformou em um dos palestrantes mais requisitados do Brasil. Filósofo, professor, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo na gestão Luíza Erundina, Cortella transita com total desenvoltura no meio corporativo, abordando em suas palestras os temas que compõem esse mundo e sempre trazendo um conteúdo filosófico que pode ser aplicado a assuntos como liderança, felicidade no trabalho, qualidade de vida, entre tantos outros, fazendo seus ouvintes refletirem sobre sua vida profissional e pessoal.
Não bastassem as aulas e palestras, ele ainda arruma tempo para apresentar os programas de TV “Diálogos Impertinentes” (PUC-SP/Folha de São Paulo/Sesc-SP) e “Modernidade” (TV Senac). E foi entre a chegada de uma viagem e a partida para outra, que o professor Cortella recebeu o Empregos.com.br e concedeu esta entrevista para falar dos temas que permeiam o mundo corporativo. Aproveite a leitura e boa reflexão!
RELAÇÕES COM O TRABALHO
Empregos.com.br – A alemã Judith Meyer afirmou há algum tempo que a flexibilização de horários, trabalho em grupo e abolição da hierarquia são formas de exploração dos empregados. Ela também diz que colega de trabalho não é amigo, que não existe prazer no trabalho. Como o senhor vê isso?
Mario Sergio Cortella –
Há um certo exagero nessa postura que não identifica no trabalho nenhuma forma de prazer. Ao contrário, a noção de prazer não é só a fruição imediata, mas é o de sentir-se bem no lugar. E são milhares e milhares de pessoas que se sentem bem fazendo o que fazem, nos hospitais, nas fábricas, nas redações, nas escolas. Nós, inclusive, temos o hábito de, quando alguém sai de casa, dizer ‘bom trabalho’, como se fosse ‘bom passeio’, como sendo uma forma de comunicação. Claro, nenhum de nós deixa de ter dissabores em relação ao cotidiano, mas não por causa do trabalho em si. A questão é que as grandes metrópoles vêm hoje, de fato, furtando muito tempo da vida cotidiana das pessoas. Não pelo número de horas que você passa no trabalho, mas especialmente porque o deslocamento nas grandes cidades para trabalhar – como no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, por exemplo – toma duas, três horas, no mínimo, do seu dia-a-dia apenas para ir até o local de trabalho. Esse número de horas se agrega à idéia de que você está trabalhando. Nós não teríamos a mesma percepção se fossemos à praia, ou a um show, ou ao cinema. Aliás, a própria legislação trabalhista considera que o seu deslocamento em direção ao posto de trabalho e o retorno fazem parte do trajeto de trabalho. Não paga como hora extra, mas é trajeto de trabalho para efeito de acidente, de ocorrência, e assim por diante. Acho que ela levanta uma posição possível, mas um pouco hiperdirmensionada. Em relação ao mundo do trabalho, eu não tenho nem uma visão catastrofista nem uma visão triunfalista. Eu acho que o que nós estamos hoje é com uma crise do conjunto da vida social, do qual o trabalho é um pedaço dela. Não é só o trabalho, é a família também, o modo como se lida com os meios de comunicação, é a relação entre as gerações, é a própria escola. Então, nós estamos em um momento de transição, de turbulência muito forte em relação aos valores. Então, insisto, para concluir, o mundo do trabalho é um mundo no qual cabe a alegria, a fruição.
Empregos.com.br – E o ambiente corporativo é propício à essa alegria?
Cortella – Existe um nível de pragmatismo hoje das pessoas ao falarem de qualidade de vida. Existe um nível de interesse, obviamente. Uma empresa não é uma estrutura de benefícios de assistência social, ela não é um órgão público. A finalidade de uma empresa do setor de serviços é o lucro. Desse ponto de vista, é claro que a companhia toma uma série de ações que fazem com que a pessoa sinta maior lealdade dentro daquela estrutura de trabalho. Eu posso dizer que isso é uma forma de engano? Não, porque do outro lado, também eu, trabalhador, também quero essas condições. Eu sei que elas exigem que eu produza mais, mas eu quero produzir mais tendo condições mais adequadas de vida, de ambiente, de relacionamento, de capacidade de carreira… É uma relação de “reciprocidade interesseira”. Porque numa competitividade exagerada como se tem hoje, com um pareamento salarial muito equivalente dentro do mercado, é necessário que a empresa tenha estruturas de fidelização do próprio funcionário. E uma das formas de fidelização é você oferecer a ele condições nas quais ele se sinta bem. Não é um ato cínico. Ele é cínico quando a empresa forja isso, aí é de natureza cosmética. Chamar o colega de amigo também é um pouco exagerado. Hoje, chamam-se as pessoas de amigo com muita facilidade – às vezes o conhecido é chamado de amigo, o colega… Fala-se até, uma coisa absurda, em network como se fosse amizade. Network não tem a ver com amizade, é um conhecimento com interesses recíprocos – eu quero estender minha rede de relações e o outro também.
QUALIDADE DE VIDA
Empregos.com.br – Com a competitividade intensa no mercado, é possível aliar essa qualidade de vida tão apregoada pelas empresas de hoje à cobrança por resultados e metas?
Cortella – Sem dúvida. Aliás, essa cobrança por resultados e metas significa que eu, trabalhador, empregado, colaborador, preciso me sentir melhor, afinal estou sendo trabalhado no limite da minha capacidade. Se além de tudo eu me sentir explorado, no sentido mais amplo da palavra, é evidente que eu quero minha condição de ação. O tema da qualidade de vida nas empresas curiosamente quem levanta é um grande professor, o Luiz Carlos Cabrera, que levanta uma hipótese muito plausível. Foi após a queda do Fokker 100 da TAM (vôo tripulado por muitos executivos) que alguns deles começaram a pensar melhor no próprio sentido do trabalho e da vida – o que, evidentemente, não retirou a necessidade de um nível de competitividade hoje que é absolutamente mais acelerado do que era antes. De maneira geral, nós no Brasil cometemos um equívoco: todas as vezes que você, por exemplo, tira licença do trabalho por uma doença qualquer, o seu critério para saber se melhorou é se você puder trabalhar de novo. Esse exagero remete, curiosamente, a um livro muito especial do século XIX que foi escrito pelo genro do Karl Marx. Paul Lafargue, cubano militante do socialismo, escreveu uma obra que eu sempre recomendo às pessoas, chamada O direito à preguiça . É uma antecipação daquilo que o Domenico De Masi chama de ócio criativo.
Empregos.com.br – Como discutir esse direito à preguiça no Brasil quando tantas pessoas não têm direito nem ao trabalho?
Cortella – São duas coisas diferentes. Uma coisa é você ter o tema do emprego resolvido. Mas o fato de você ter trabalho não significa que, porque não se tem, se deva ter qualquer trabalho. Hoje, um cortador de cana no estado de São Paulo, para sobreviver, precisa cortar dez toneladas de cana por dia. O fato de você dizer “estou empregando mil pessoas” não significa que seja qualquer emprego e que esse trabalho possa beirar o nível da brutalidade. Ou seja, não é porque alguém está desempregado que ele se submeterá a isso. É uma questão de pacto social mais amplo, no qual se admita não só a perspectiva do trabalho como também trabalho com condições dignas. Por isso são duas coisas diferenciadas. É necessário olhar que, embora a gente tenha uma obscenidade no campo do desemprego, não necessariamente nós temos ausência de trabalho, porque existe um nível altíssimo de trabalho não registrado. A finalidade do trabalho é a capacidade de você tornar-se real, uma realidade. Todas as vezes que aquilo que você faz não permite que você se reconheça, seu trabalho se torna estranho a você. As pessoas costumam dizer “não estou me encontrando naquilo que eu faço”, porque o trabalho exige reconhecimento – conhecer de novo. Hoje, quando eu penso em um trabalho de qualidade de vida numa empresa estou pensando em um trabalho que não seja alienado. Trabalhar cansa, mas não necessariamente precisa gerar estresse. Isso tem a ver com resultado, trabalho tem sempre a ver com resultado. Por que um bombeiro, que não ganha muito e trabalha de uma maneira contínua em algo que a maioria de nós não gostaria de fazer, volta para casa cansado, mas de cabeça erguida? Por causa do sentido que ele vê no que faz.
Empregos.com.br – Por isso a importância de se encontrar prazer e sentido no trabalho.
Cortella – Claro. Mas isso não é uma tarefa individual. A empresa não pode dizer assim: “você precisa encontrar o prazer no que você faz”. Aliás, algumas empresas estão fazendo dessa responsabilização quase uma “culpabilização” do funcionário, em relação à formação dele. Se você é o mestre da sua vida, precisa fazer o auto-desenvolvimento do conhecimento e da educação continuada, claro, mas para que eu faça isso, eu tenho que fazer uma parceria. A empresa tem que me oferecer condições – ou para que eu saia mais cedo, ou para que ela participe comigo da cobertura de custos de algumas atividades, ou que forneça alguns orientadores de educação dentro da própria empresa.
TRABALHO INFORMAL
Empregos.com.br – Como lidar positivamente com o paradoxo criado pelo emprego informal, em que por um lado a pessoa está desamparada pelo Estado, e, por outro, tem mais liberdade para desenvolver a carreira do próprio jeito?
Cortella – Eu acho que a gente precisa fazer aquela clássica distinção entre trabalho e emprego. Emprego é uma das formas de trabalho. Evidentemente, você sabe que alguém que não está no sistema formal tem mais liberdade, mas também tem mais insegurança. Eu, de maneira alguma, defendo o mercado informal de trabalho. Eu acho é que é necessário uma flexibilização do modo em que as relações de vínculo de trabalho se dão. Eu acho que o trabalho sem vínculo empregatício – não necessariamente informal – precisa de uma legislação própria que ampare no nível da contribuição, no nível da proteção do poder público, e que permita justamente essa liberdade. É preciso mexer nesse campo. Nem sempre ficar livre é ficar independente, às vezes você se liberta de uma situação, mas não ganha independência. Mas pode ser que ele tenha mais prazer. Porque a questão central não é ter um patrão ou não, é como você se relaciona com ele. Há chefias que são inspiradoras e outras que são expiradoras. É fácil você distinguir, pois um chefe inspirador você mais do que obedece, você admira. Quando você é chamado para a sala, você sabe que, mesmo que seja uma bronca, aquilo fará com que você se saia melhor. Outros chefes já não, são aqueles “expiradores”. Quando ele chama, você já vai desanimado e, antes de chegar à sala dele, você pára e expira o ar. A diferença entre esses dois chefes é que aquele que inspira pode, com toda razão, ser chamado de líder, e aquele que não inspira é o chefe. A chefia está sustentada na hierarquia, a liderança, não. Ora, é tanto melhor você estar no mercado formal quando você tem um chefe inspirador. No trabalho informal, às vezes você é seu próprio chefe, e aí é claro que você pode ter um nível de soltura mais adequado. Para alguns, é uma questão de escolha; para outros, de absoluta impossibilidade.
LIDERANÇA
Empregos.com.br – Atualmente, temos mais líderes ou mais chefes?
Cortella – Hoje existe uma formação do que eu chamo de líderes anônimos, aqueles que não têm necessariamente uma função hierárquica. Sempre argumento num ponto: a liderança não é uma coisa inata, o líder é aquele que é capaz de inspirar projetos, idéias, movimentos, pessoas… Isso significa que cada um de nós é líder em coisas variadas, você não é líder em todas as coisas. Não dá para as pessoas confundirem liderança com experiência de faixa etária. Experiência tem a ver com intensidade, não com “extensidade”. Você pode ser alguém com 24 anos que tenha uma intensa experiência numa situação e ser alguém de 50 que tenha uma extensa experiência. E isso não ajuda, porque a capacidade de liderar, de tirar o melhor do outro e conduzir está na intensidade. É por isso que bons médicos são formados no pronto-socorro, porque lá você tem uma intensificação das condições dos problemas médicos. Muito diferente de você fazer um atendimento ambulatorial, em que você oferece uma consulta e encaminha. O pronto-socorro é o lugar por excelência da formação de um médico porque ali ele vivencia de forma intensa e veloz uma série de circunstâncias. Então, esta “extremização” ou “agudização” da experiência equivale à intensidade. Se experiência não tem a ver com idade nem é inata, significa que cada um de nós pode desenvolvê-la. Empresas inteligentes, e eu já encontro algumas, são capazes de favorecer as lideranças que no dia-a-dia não estão conectadas à hierarquia. Em outras palavras, elas criam as ocasiões para que isso venha à tona. Maquiavel, autor famoso de O Príncipe , do século XVI, tem uma frase que é muito especial. Ela fala que o príncipe é aquele que junta duas grandes situações. Junta a virtude – em italiano ele dizia virtù – com a fortuna. Ou seja, a ocasião com a capacidade. Nas empresas há milhares de pessoas que têm grandes capacidades, mas não têm a ocasião de fazê-las vir à tona. Hoje, existem organizações que têm círculos de pensamento, que têm células de produção do novo, que têm a semana de incentivo à qualidade em que cada um pode fazer vir à tona aquilo que têm de melhor de suas competências. Por isso, inclusive, que algumas empresas estão levantando, até formalmente, inventário das habilidades e competências que estão espalhadas no dia-a-dia e registrando isso num memorial de relação ao funcionário para que não se percam competências que ficam no dia-a-dia diluídas em função da atividade que a pessoa desenvolve. Existe uma multilateralidade na condição de liderança. Eu sou líder para alguma coisa e não sou para outras. E vice-versa. Se nós nos juntarmos, aí a gente faz uma empresa líder, o que é outro sentido.
CONHECIMENTO
Empregos.com.br – Uma das condições para ser líder hoje é saber inovar, sair do quadrado, mas o mercado também exige experiência técnica. Ainda são poucas as empresas que conseguem aliar as duas coisas? Isso é uma tendência?
Cortella – São somente as empresas mais inteligentes. São aquelas que criam a ocasião. É uma tendência de sobrevivência no mercado, porque hoje você tem a tecnologia como uma grande commodity , o que vai de fato diferenciar uma organização de outra é o estoque de conhecimento que ela maneja. Afinal de contas, o novo é o estoque de conhecimento avançado, dado que toda parte de insumos e maquinários é commodity , você tem e eu tenho. A grande força interna são as pessoas. Como as pessoas são proprietárias dos conhecimentos que elas carregam, independentemente da escolaridade que tenham, uma empresa inteligente é aquela que maneja esse estoque de conhecimento. Esse estoque de conhecimento é o que leva à inovação. Eu insisto bastante para que não se confunda novo com novidade. O novo é aquele que se instala, revoluciona e permanece, tem perenidade. Novidade é passageiro. Lembrando inclusive que informação de recursos humanos, de treinamento, de palestra, é cheio de novidade. Entra, vem e fala, aí vira moda e desaparece. É uma coisa meio bambolê, eu chamo de “palestra bambolê” – vira, encanta, todo mundo acha uma beleza, mas não tem perenidade. O mesmo vale para algumas coisas na formação interna. Mozart é algo absolutamente novo. As idéias de Henry Ford, elas são novas em relação à capacidade de realização do trabalho. O fato de estar no tempo não significa que deixou de ser novo – significa que é tradicional, não velho. E você tem algumas empresas que são capazes de enxergar essa condição e outras não. Inovar é renovar, não é tornar inédito. Muitos e muitos confundem ineditismo com renovação. O inédito é aquilo que não existia antes; o novo é aquilo que dá vitalidade ao que já existe. Hoje, a velocidade do aparecimento de novas coisas é tamanha e a profundidade é tamanha que a gente tem a sensação de que aquilo é inédito. Mas, se você observar, máquinas de calcular, que geraram máquinas de computar, são originadas das máquinas de tear do século XVII. Não é que não exista nada de novo sob o sol. É que você tem um processo de produção do conhecimento humano. Aliás, eu sou um adversário da frase que diz que nós estamos vivendo a Era do Conhecimento. Nós sempre vivemos a Era do Conhecimento, senão não estaríamos vivos. O que nós estamos vivendo é a era da aceleração da informação. Hoje você tem informação veloz e em altíssima quantidade e de maneira pensada, com meios de acesso bastante facilitados. Isso é inédito. Mas cautela. A maior parte das pessoas diz que navega na Internet e não é verdade – a maior parte naufraga. Porque para você navegar você tem que ter clareza para onde você vai.
Empregos.com.br – Com essa velocidade e quantidade de informação, as pessoas quase nunca conseguem absorver o conhecimento…
Cortella – Claro. Porque informação é diferente de conhecimento. Informação é cumulativa e conhecimento é seletivo. Comer bem não é comer muito. Comer bem é comer de forma selecionada. Para isso, você precisa ter critério, e critério é algo que se desenvolve com o refinamento do espírito, da capacidade mental… Se você quer investir na formação de pessoas, você precisa investir nos critérios que elas carregam, porque elas saberão escolher. Algumas empresas não entendem isso. Elas soterram, inundam o funcionário com informações do cotidiano supondo que com isso ela está produzindo conhecimento. Não é verdade, conhecimento é aquilo que se apropria, que se torna próprio. Aliás, conhecimento é inesquecível. Uma empresa inteligente é aquela que faz vir à tona esses conhecimentos que não são mera informação. Muitos de nós, escolarizados e com nosso MBA, doutorado, temos muita informação, não necessariamente conhecimento.
VELHOS E JOVENS NO TRABALHO
Empregos.com.br – Podemos constatar que, na atualidade, pessoas cada vez mais novas são alçadas a altas hierarquias e nem sempre possuem esse conhecimento e experiências intensas.
Cortella – É que apareceu um mundo agora também em que a pessoa mais nova está, sim, apta a fazê-lo. Porque durante séculos na história da humanidade os mais idosos ensinavam os mais jovens. Mas nos últimos 30 anos apareceu uma série de circunstância em que o mais novo tem um conhecimento que ele transfere. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos sobre razões do sucesso de um projeto numa empresa apontou muitas variáveis. A principal e decisiva foi a mescla de faixas etárias. Em vez de pegar só os mais experientes, ou só os mais idosos, ou só os mais jovens, a principal qualidade do sucesso de um projeto foi a mescla de pessoas com pouco tempo de empresa, muito, mais idade, menos idade. Porque o segredo da vida é a biodiversidade, e o segredo da vida humana é a antropodiversidade. É a diversidade de humanos que permite que você aumente o repertório. Pessoas que trabalham numa exclusiva direção restringem o repertório de soluções e perguntas. Aliás, só cresce a empresa que é capaz de, inclusive, ter dúvidas. Nós temos um certo trauma em relação a dúvidas em nosso País , porque a escola fundamental colocou para nós a dúvida como um defeito, quando é a dúvida que produz o novo. A professora terminava a aula e dizia assim: “alguma dúvida?”, já num tom de voz exclamativo e, ao mesmo tempo, depreciativo. E aí nenhum aluno levantava a mão. Aliás, vez ou outra um colega tinha esse tipo de inteligência, mas era tripudiado pelo resto da sala. Como se ter dúvidas fosse sinal de ter indigência mental, quando é o contrário. Cuidado com gente cheia de certezas. Gente cheia de certezas só é capaz de repetir o que falam. E num mundo cheio de velocidade a dúvida tem que ter um lugar especial. Aliás, o Millôr Fernandes, homem de mais de 80 anos de idade, grande escritor, costuma dizer que “se você não tem dúvidas, é porque está mal informado”.
Empregos.com.br – Às vezes, os mais jovens entram na empresa com ar arrogante, achando que sabem tudo, e os mais velhos ficam com o pé atrás. Como lidar com essa situação?
Cortella – Tem que estabelecer parcerias. Esta é uma tarefa das direções, mesclar as duas experiências. Mas precisa também promover palestras que discutam essa temática, de maneira que as pessoas tragam a consciência para fora, em relação a isso. A arrogância é o vício dos ineptos. De maneira geral, o arrogante é aquele que acha que já sabe. E isso é o passo mais decisivo para você ficar descartável em relação a um mundo que muda velozmente. Afinal de contas, o primeiro passo para você sair do fundo do poço é parar de cavar. E a arrogância é a pá principal daqueles que cavam o seu próprio buraco. Nem sempre o jovem tem clareza disso, nem sempre o idoso tem clareza disso. Trazer isso à tona exige um trabalho de informação através de palestras, aulas, e quebrar isso no dia-a-dia exige um trabalho de projetos conjuntos. Nada melhor para eu aprender do que conviver com aquele que é diferente de mim. Isso vale hoje para a chamada proposta inclusiva no conjunto da sociedade. Pessoas portadoras de deficiência, ao serem inseridas no ambiente de trabalho, produzem a necessidade de, às vezes, você ter que pensar como é que se relaciona com essas pessoas, que antes poderiam ser até invisíveis para você. Ou seja, não disputava, não entrava, não convivia, não era problema meu. Agora não. Isso é um sinal, inclusive, de dignidade social. Portanto, expor o arrogante idoso ou o arrogante jovem a situações em que a arrogância seja colocada em xeque é uma tarefa primordial do cotidiano, especialmente na área de Recursos Humanos.
Empregos.com.br – E como se tornar uma pessoa fundamental para a empresa?
Cortella – Você se torna fundamental quando você é uma pessoa capaz de aprender continuamente. Isso fica claro, quando você é capaz de se renovar no seu cotidiano. Mas há uma outra situação que se torna fundamental. É quando você é capaz de formar as pessoas que hierarquicamente estão abaixo de você, para que você possa se tornar substituível. Porque há um equívoco brutal que alguns cometem de tornarem-se insubstituíveis, e aí não é promovido nunca. Se você prepara aquele que vai estar no seu lugar, você muda de lugar. Quando você é reconhecido como um grande formador de pessoas, você se torna fundamental. Porque alguém que se torna insubstituível será insubstituível enquanto existir aquela área em que ele está. Por isso, a primeira atitude que um bom chefe tem que tomar é preparar o seu sucessor. Uma empresa inteligente não demite o chefe e fica com o sucessor, ela eleva aquele que é capaz de formar pessoas. Então, fundamental é aquele que é capaz de formar pessoas e renovar-se continuamente.
Empregos.com.br – Mas o senhor não acha que ainda falta esse tipo de visão entre as pessoas?
Cortella – Sim, porque é uma visão de competência individual, uma coisa tola do final do século XX e início do XXI. A noção de competência, antigamente, era: a minha competência acaba quando começa a do outro. Hoje não mais. Hoje, a lógica é: a minha competência acaba quando acaba a do outro. Num grupo, numa área, num setor, se eu perco competência, você perde. Se você ganha, eu ganho. Aliás, cada vez que você sai para estudar, fazer um curso, eu tenho que ir atrás de você, bater nas suas costas e agradecer. Porque o fato de você fazer isso fortalece a minha competência. Porque nós temos hoje uma estrutura de interdependência.
JEITINHO BRASILEIRO
Empregos.com.br – Em relação à nossa cultura, como o senhor enxerga positivamente e negativamente o “jeitinho brasileiro”?
Cortella – A cultura brasileira, em função da mescla étnica que ela tem e da capacidade também de nós termos uma formação mais múltipla, é marcada pela flexibilidade, nós somos mais flexíveis. Mas a gente tem também um nível de imprecisão muito grande. Não se confunda flexibilidade com volubilidade. Uma pessoa flexível é aquela que é capaz de alterar o que pensa e faz se houver razões suficientes pra isso. Uma pessoa volúvel é aquela que abre mão com facilidade das coisas. O “jeitinho”, quando ele é flexibilidade, ele é uma capacidade de organização diferente, elasticidade da operação. Mas quando ele é mera volubilidade, mera adaptação interesseira, ele é negativo. Uma coisa que assusta alguns estrangeiros é a nossa capacidade de imprecisão em algumas coisas. Você liga para mim e diz “olha, eu estou atrasado para a nossa reunião, mas daqui a uma ou duas horas eu estou aí”. Uma ou duas horas significa que você já está atrasado e entre uma e outra tem exatamente o dobro. Isso não é jeitinho, é uma incapacidade de organização. Disciplina não é sinônimo de cabeça fechada. Disciplina é uma coisa que facilita o trabalho. Quanto mais disciplinado e mais organizado eu sou, mais eu fico com tempo livre para coisas mais prazerosas. Quanto mais disciplinado sou, menos tempo vou gastar naquilo que faço. Afinal de contas, quem não planeja faz duas vezes. Professores, colegas nossos na Europa, contam sempre isso: os alunos brasileiros quando vão para a Europa captam tudo de forma muito rápida. Nós somos muito rápidos no raciocínio, mas somos muito lentos na execução. Então, eu sou capaz de perceber de forma sintética, mas nós temos um raciocínio analítico muito pequeno. Porque o raciocínio analítico exige dedicação, disciplina, estrutura, método e paciência. Aí é uma coisa mais complexa para nós. Então, o “jeitinho” é bom quando ele é flexibilidade, mas é ruim quando é descompromisso ou quando é volubilidade.
QI, QUEM INDICA
Empregos.com.br – Muitas empresas têm adotado a indicação de seus funcionários para novas contratações. Esse tipo de QI (quem indica) é prejudicial ou não?
Cortella – Durante séculos estabelecemos o que se chama de “relações de compadrio”. O único jeito de eu sobreviver, se não fosse da nobreza e trabalhasse na roça, era escolher você, dono da terra, para batizar meu filho. Isso significa que entre mim e as minhas condições preciso de um intermediário. Nesta lógica, nós até hoje temos no mundo do trabalho uma série de situações de compadrio, em que eu procuro o outro para que ele me indique e eu possa conseguir aquele lugar. Esta lógica das relações é uma coisa histórica numa nação que se construiu à base do favor recíproco. Não é casual que, quando você faz alguma coisa para alguém, ele agradeça com a expressão “obrigado”. Ou seja, tem um vínculo de reciprocidade, você fica aguardando que virá o troco. Isso vale para o mundo do trabalho, em que você pode lembrar que, em um País em que as relações de emprego eram muito informais no cotidiano, depender da indicação sempre foi uma coisa muito forte. Ainda continua. Ela não é decisiva nas grandes corporações, mas ela tem um peso. Às vezes, as relações pessoais são melhores que as entrevistas e processos seletivos. Porque você, sendo indicado por um amigo ou conhecido, vem com o aval que o legitima, e algumas empresas preferem isso. Então não é sempre negativo. Às vezes é negativo porque fica sem a justiça do conjunto das chances iguais.
Empregos.com.br – O senhor acha que as empresas estão dispostas a proporcionar aos funcionários o ócio criativo ou recreativo?
Cortella – Só as inteligentes. Só as que irão sobreviver. Só as que estaremos falando sobre elas daqui a dez anos. As outras não, são retrógradas, não são capazes de perceber que a finalidade hoje de uma empresa é deixar seus funcionários em estado de atenção, e não estado de tensão. É perceber que é necessário que as pessoas estejam em estado de prontidão. Prontidão para mudança, prontidão para alteração. E que elas precisam ter o ócio recreativo, mesmo, isto é, a capacidade de se sentir bem. Um trabalho sério não é um trabalho triste. Seriedade não é sinônimo de tristeza – tristeza é sinônimo de problema. Uma aula para ser séria não tem que ser triste. Um trabalho para ser sério não tem que ser triste, ele tem que ser um lugar onde você se sinta bem. Claro, ele não pode ser descompromissado, mas tem que ser alegre, e só o ócio recreativo permite isso. Basta você imaginar o quanto que, na educação infantil, o modo de aprendizagem de uma criança dos 4 até os 6 anos de idade se dá no recreio. E a palavra recreio não tem esse nome à toa, recreio significa “criar de novo”. Porque é no recreio que você brinca, você conversa… Em vários eventos as empresas inclusive fazem o chamado coffe break mais longo, para as pessoas poderem conversar, por que é ali que aprendem, trocam experiência… isso é o ócio recreativo. O trabalho insano, esmagador, meramente voltado para a produtividade é um trabalho que tem sucesso limitado no tempo.
AUTO-AVALIAÇÃO
Empregos.com.br – Como o senhor faz para conciliar todas as suas atividades e continuar tendo qualidade de vida?
Cortella – Primeiro que eu tenho um trabalho absolutamente prazeroso. E o trabalho, quando ele é prazeroso, ele tem que ser organizado de maneira a você dar conta do conjunto dele. Eu, no meu cotidiano, me sinto várias vezes cansado, mas nunca estressado. Eu só me sinto estressado quando aquilo que eu estou fazendo perde o sentido. Ou seja, começa ser feito de forma automática. Essa completude que meu dia carrega são coisas extremamente saborosas para mim. Além de ser um meio financeiro, de retorno, eu gosto de fazer. E gostar de fazer significa que eu tenho um sentido nisso que eu estou fazendo. E o lazer, como é que ele se completa? Muitas vezes eu e a Janete – com quem sou casado e que é minha chefe e sócia – viajamos juntos. Quando nossos filhos eram pequenos, nós não fazíamos isso, porque isso seria descuidar da educação deles. Mas hoje, eles moram sozinhos, evidentemente que é possível. Em alguns momentos, por exemplo, eu intensifico o trabalho e em outro eu relaxo um pouco mais. Continuo na universidade dando aula, faço meu programa de TV e de rádio, vou encaixando aquilo que é positivo. Mas eu, há cinco anos, por exemplo, a cada quatro meses, sem exceção, fico uma semana em um spa médico, em Sorocaba. Fico uma semana nadando, fazendo dieta, fazendo ginástica, lendo… Naquela semana, pode ser uma convocação do papado que eu não vou. Para mim, é um momento meu. Embora palestrante também viva um momento seu o tempo todo, porque eu tenho um trabalho prazeroso e aquilo que eu faço tem retorno imediato. Eu fico sabendo se funcionou ou não, agora. Eu terminei a palestra, eu sei se funcionou ou não. Se funcionou, ótimo, se não funcionou, é melhor eu começar a aprender algumas coisas para que funcione. Então, tem aquela questão de prioridade. Quando eu digo assim ‘eu não tenho tempo para conversar com você’, eu estou dizendo ‘eu não te escolho’. E tempo é uma coisa que você constrói. Eu tenho algumas vantagens, porque eu levanto muito cedo, às 4h30, 5h da manhã todos os dias, independentemente de viagem. Porque é um período em que eu escrevo, em que a humanidade está quieta, na madrugada. Mas também levanto cedo quando tenho atividades para fazer. E não dirijo, esse é um segredo especial. Não tenho nem carteira de motorista. Inclusive porque é 30% mais barato pegar ônibus, táxi, metrô, andar a pé. Daí que isso mantém uma certa paciência e convivência.

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